9.5.06

 
AUTO MÓVEL

Noite de sábado. Tambores, ganzás, baquetas, apitos e o tubo plástico de Redoxon são os passageiros do carro, que vão se aquecendo e produzindo sons familiares para mim, a cada nova curva ou buraco no asfalto. Vou na monotonia do eixinho “de baixo”, sentido sul-norte. Saio da 7 sul para tocar na 111 norte; em Brasília, dezenove horas, mas sem Voz do Brasil, pois no sábado, Brasil se cala no rádio, falando muito nas mesas dos bares.

Como um tiro, um estampido ecoa dentro do carro. Pneu furado? Novo efeito percussivo? Demorei uns segundos sem descobrir a fonte sonora. A resposta estava a meus pés. Precisamente, no pé esquerdo. Foi-se o cabo da embreagem. O pedal, sem vida, foi sugado para perto da carroceria. Como estava com a marcha engatada, decidi
tentar o retorno em forma de tesourinha que se aproximava. Certas horas, meia-volta-volver é a única opção.

No embalo do câmbio, que parecia tão favorável quanto o dólar atual, fiz a tesourinha e ensaiei a subida pela outra, que me levaria ao caminho de volta. Fiquei. Nunca fui bom em Física mesmo... Pisca alerta ligado. Outros carros, manuais e hidramáticos, não quiseram saber do meu drama. Fiquei.

Um Fusca, meio azulado, parou atrás, e ali ficou. Sinalizei, mostrando meu polegar para baixo, reflexo de como me sentia. Gritou o motorista:

- Quer que eu empurre? Estou de Fusca!

Pensei cá com meus pedais quebrados, que eu também estava num Fusca, já que Golmil era seu substituto natural. Ele desceu do carro, veio pacientemente até minha janela, e sugeriu empurrar meu Fusca, perdão, meu Golmil, tesoura acima. Os instrumentos se entreolharam, pedindo para serem salvos de tamanho
embaraço. Pensei no parachoque, que devia aguentar um outro Fusca a empurrá-lo. Quem não tem cão...

Subimos a tesourinha, devagar e divagando, segurando uma fila de impacientes, que não entendiam o que era aquele estranho comboio. Chegando ao topo, paramos um
pouco para rir e analisar a situação. Ele disse seu nome: Rafael, fotógrafo de Senador – até isso eles têm? Como um posto de gasolina estava bem próximo,
resolvemos que o procedimento de empurrar-com-o-bigode do Fusca deveria continuar. Ali seria um bom abrigo para meu avariado meio de transporte.

Lá chegando, ele se ofereceu para levar, eu e minha bagagem musical, para a Asa Norte, pois ele ia para o mesmo lado. Aos poucos, fui transferindo as coisas
para o outro veículo. Um Chevette anos 70 entra no posto, e começa a encher os pneus. Era amarelo, daqueles desbotados. Eu tive dois Chevettes: um 80,
chamado carinhosamente de “chevelho” ou "gerimum", por conta da cor, e um 92, com o qual matei um cavalo em Taguatinga.

Abrimos a tampa, e o motorista do Chevette se aproxima e pergunta o que houve. Falei da perda do pedal. Maranhão, seu nome, é mecânico em Taguá, e explicou que passa as noites de sexta e sábado dando voltas no Plano, acodindo os desesperados das pistas. Disse que tinha um cabo que serviria no meu carro. Dito o preço, e aceito sem negociação de minha parte, pois as horas brincavam de passar, saquei uma nota de cinco que Raphael - agora com “ph”, pois vi na sua carteira de jornalista - , fez trasformar em duas latas de cerveja geladíssima.

Maranhão trabalhou rápido. Secamos as latinhas. Fiz o pagamento do combinado, testei a pedaleira recuperada. O trio insólito foi desfeito. Nos despedimos como estranhos que éramos, unidos repentinamente por uma causa.

Devolvi as coisas, que pareciam felizes-para-sempre, para meu carro. Parti para a Asa Norte. Se eu fosse o Paulo Coelho, eu diria que Raphael, com “ph”, era um anjo, e que Maranhão, mesmo sem a indumentária certa, era um elfo consertador ou alguma criatura mística.

O imortal escritor, não anda mais de Fusca, como andava nos tempos do Raulzito. Raphael, só achou graça da situação, sempre enaltecendo a bravura do Fusca, não tinha asas, e o bafo de cerveja entregava sua humanidade. Maranhão, trocou conhecimento por dinheiro, como era de se esperar.

Toquei a noite quase toda, e a todos que pude, contei a história. Apesar do convite para mais uma cerveja por conta, Raphael não apareceu no bar. Será que estava a empurrar mais alguém?

Para mim, Raphael foi o bêbado mais solidário que conheci; anda em um Fusca com placa de Natal-RN, e vive de fotografar autoridades. Maranhão, mecânico-visionário, que busca as oportunidades do ganha-pão nas estradas da vida, salva muita gente todos
fins-de-semana. Sobrou para mim, nessa história, ser somente o cara de muita sorte.

Eric Germano - 8/5/2006

E para você, leitor(a) que pegou carona nesse Auto Móvel, fica o telefone do Maranhão, para alguma emergência:

Maranhão: 61 9260-9826

Do Rafhael, não peguei o contato para fotos, só a vontade de trocar meu Golmil por um Fusca, rs.

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